terça-feira, 23 de setembro de 2008

O MELHOR DO «JORNAL DOS ARCOS» [III]

HERÓIS DE MÁRMORE

Arquíloco, poeta grego do século VII a. C. escreveu o seguinte: “Algum Saio se ufana agora com o meu escudo, arma excelente, / que deixei ficar, bem contra a vontade, num matagal. / Mas salvei a vida. Que me importa aquele escudo? / Deixá-lo! Hei-de comprar outro que não seja pior” (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira em Hélade). A verdadeira sabedoria é intemporal e, se quem foge é valente, haverá homem mais heróico do que Arquíloco? Não será que herói é aquele que não consegue fugir a tempo?

Eu, por pouco, não conseguia fugir a tempo e ainda fiz a Escola Primária antes do 25 de Abril, o que me valeu uma razoável intoxicação ideológica, pois, naquele tempo, a História era um repositório de super-heróis que derrotavam sozinhos castelhanos aos magotes ou de surfistas prateados que carregavam no ombro másculo caravelas por mares convenientemente nunca dantes navegados.

Hipnotizado que estava por este olimpo povoado de gamas, cabrais e camões, caiu-me em cima a bendita Revolução e assisti escandalizado à degradação daqueles indivíduos formidáveis, passando a História a ser protagonizada por um povo carregado de sentido histórico, numa luta de classes que, ao que parece, ainda dura.

Entretanto, surgiam-me outros heróis de calções e chuteiras. Logo aí, comecei a sentir-me diferente: o meu ídolo era um jogador chamado Nené, goleador fino, frio, eficiente, que raramente sujava os calções e que, por esta razão, era frequentemente vaiado pelo povo benfiquista, crente de que não há verdadeira paixão sem a mancha esverdeada da lama.

Mas o que será, então, um herói? Na minha opinião, é um objecto da nossa paixão, com tudo o que isso implica de cegueira e de fé, posters na parede ou fotografias no caderno diário. O herói habita torres cuja base toca a terra, mas está no alto e raramente vem à janela. Cheirar o hálito do herói será um momento verdadeiro mas inverosímil, uma experiência mística alienante, como as das meninas americanas que foram esperar os Beatles ao aeroporto.

Se isto é um herói, tenho que confessar que há muito que não tenho nenhum, mas nem por isso vivo mais triste ou aprecio menos a História. Acredito, simplesmente, que o herói não é um pedaço gigantesco de mármore, mas um homem que, condenado ao vício, incomodado por problemas intestinais e empurrado pelos desejos mais baixos, consegue feitos extraordinários. Os homens devem ser compreendidos na sua humanidade e não adorados até à incompreensão. O herói pode ser Arquíloco a confessar a sua cobardia ou o Fernão Veloso de “Os Lusíadas” a fugir (a tempo) dos indígenas. Entre um herói intocável e um ser humano que me toque não hesito: ao mármore prefiro sempre a pele, que combina melhor com a minha perenidade.

Fernando Nabais

(Texto Publicado em JUNHO DE 2007,

in «Jornal dos Arcos», N.º 5, pág. 9.)

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